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deter-se a manifestação, esta pequena parte que dela vemos, no cruzamento em
que o palacete, com o seu jardinzinho à volta, ocupa uma das esquinas, o resto
derramando-se pela calçada abaixo, pelos largos e ruas limítrofes, se ainda cá
estivessem os aritméticos da polícia diriam que, ao todo, não eram mais que
cinquenta mil pessoas, quando o número exacto, o número autêntico, porque as
contámos todas, uma por uma, era dez vezes maior.
Foi aqui, estando a manifestação parada e em absoluto silêncio, que um arguto
repórter de televisão descobriu naquele mar de cabeças um homem que, apesar
de levar um penso que lhe cobria quase metade da cara, ainda assim pôde
reconhecer, e tanto mais facilmente quanto é certo que no primeiro relance de
olhos havia tido a sorte de captar, fugidia, uma imagem da face sã, que, como se
compreenderá sem dificuldade, tanto confirma o lado da ferida como é por ele
confirmada.
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Arrastando atrás de si o operador de imagem, o repórter começou a abrir caminho
por entre a multidão, dizendo para um lado e para outro, Com licença, com
licença, deixem passar, abram campo, é muito importante, e logo, quando já se
aproximava, Senhor presidente, senhor presidente, por favor, mas o que ia
pensando não era tão cortês, Que raio veio fazer aqui este gajo. Os repórteres são
em geral dotados de boa memória e este não tinha esquecido a afronta pública de
que a corporação informativa fora vítima imerecida na noite da bomba por parte do
presidente da câmara municipal. Agora iria ele saber como elas doíam. Meteu-lhe
à cara o microfone e fez ao operador de imagem um sinal ao estilo de seita
secreta que tanto poderia significar Grava como Esborracha-o, e que, na presente
situação, provavelmente significaria uma e outra coisas, Senhor presidente,
permita-me que lhe manifeste a minha estupefacção por vir encontrá-lo aqui,
Estupefacção, porquê, Acabo agora mesmo de o dizer, por vê-lo numa
manifestação destas, Sou um cidadão como outro qualquer, manifesto-me quando
e como entenda, e muito mais agora que já não é necessário pedir autorização,
Não é um cidadão qualquer, é o presidente da câmara municipal, Está enganado,
há três dias deixei de ser presidente da câmara, pensei que a notícia já fosse
conhecida, Que eu saiba, não, até agora não recebemos qualquer comunicação
oficial sobre o assunto, nem da câmara, nem do governo, Suponho que não se
está à espera de que eu convoque uma conferência de imprensa, Demitiu-se,
Abandonei o cargo, Porquê, A única resposta que tenho para lhe dar é uma boca
fechada, a minha, A população da capital quererá conhecer os motivos por que o
seu presidente da câmara, Repito que já não o sou, Os motivos por que o seu
presidente da câmara se incorporou a uma manifestação contra o governo, Esta
manifestação não é contra o governo, é de pesar, as pessoas vieram enterrar os
seus mortos, Os mortos já foram enterrados e, não obstante, a manifestação
prossegue, que explicação tem para
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isso, Pergunte a estas pessoas, Neste momento é a sua opinião que me interessa,
Vou aonde elas vão, nada mais, Simpatiza com os eleitores que votaram em
branco, com os brancosos, Votaram como entenderam, a minha simpatia ou a
minha antipatia nada têm que ver com o caso, E o seu partido, que dirá o seu
partido quando tiver conhecimento de que participou na manifestação, Pergunte-
lhe, Não teme que lhe venham a ser aplicadas sanções, Não, Porque está tão
seguro disso, Pela muito simples razão de que já não estou no partido,
Expulsaram-no, Abandonei-o, da mesma maneira que tinha abandonado o cargo
de presidente da câmara municipal, Qual foi a reacção do ministro do interior,
Pergunte-lhe, Quem lhe sucedeu ou vai suceder no cargo, Investigue, Iremos vê-lo
noutras manifestações, Apareça e logo saberá, Deixou a direita, onde fez toda a
sua carreira política, e agora passou-se para a esquerda, Um dia destes espero
compreender para onde me passei, Senhor presidente, Não me chame presidente,
Desculpe, foi a força do hábito, confesso-lhe que me sinto desconcertado,
Cuidado, o desconcerto moral, parto do princípio de que é moral o seu
desconcerto, é o primeiro passo no caminho que leva à inquietação, daí para
diante, como vocês tanto gostam de dizer, tudo pode acontecer, Estou confundido,
não sei que hei-de pensar, senhor presidente, Apague a gravação, os seus
patrões poderão não gostar das últimas palavras que você disse, e não torne a
chamar-me presidente, por favor, Já tínhamos desligado a câmara, Melhor para si,
assim evita trabalhos, Diz-se que a manifestação irá agora ao palácio presidencial,
Pergunte aos organizadores, Onde estão, quem são eles, Suponho que todos e
ninguém, Tem de haver uma cabeça, isto não são movimentos que se organizem
por si mesmos, a geração espontânea não existe, e muito menos em acções de
massa com esta envergadura, Não tinha sucedido até hoje, Quer então dizer que
não acredita que tenha sido espontâneo o movimento do voto em branco, É
abusivo pretender inferir uma coisa da outra,
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Tenho a impressão de que sabe muito mais deste assunto do que quer fazer
parecer, Sempre chega a hora em que descobrimos que sabíamos muito mais do
que antes julgávamos, e agora deixe-me, vá à sua vida, procure outra pessoa a
quem fazer perguntas, repare que o mar de cabeças já começou a mover-se, A
mim o que me assombra é que não se ouça um grito, um viva, um morra, uma
palavra de ordem que expresse o que a gente quer, só este silêncio ameaçador
que causa arrepios na espinha, Reforme a sua linguagem de filme de terror,
talvez, no fim de contas, as pessoas só se tenham cansado das palavras, Se as
pessoas se cansam das palavras fico sem emprego, Não dirá em todo o dia de
hoje coisa mais certa, Adeus, senhor presidente, De uma vez por todas, não sou
presidente. A cabeça da manifestação tinha rodado um quarto de volta sobre si
mesma, agora subia a íngreme calçada em direcção a uma avenida comprida e
larga ao fim da qual viraria à direita, recebendo no rosto, a partir daí, o afago da
fresca aragem do rio. O palácio presidencial estava a uns dois quilómetros de
distância, tudo por caminho chão. Os repórteres tinham recebido ordem para
deixarem de acompanhar a manifestação e correrem a tomar posições em frente [ Pobierz caÅ‚ość w formacie PDF ]
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